[Resenha] Para Todos os Tipos de Vermes de Kione Ayo não é Uma História em Quadrinhos Para Fracos

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ParaTodTipoVermesDifícil falar, ou escrever sobre essa história em quadrinhos. Kione Ayo (textos, desenhos e arte-final) cria uma metáfora visual e escrita arrojada, corajosa e dura sobre nossa sociedade da perspectiva de oprimidos que não se vitimizam, que lutam, que exercem a justa ira e batem de volta. Todas as escolhas da autora são extremamente arriscadas e acertadas. A história em quadrinhos é excelente, mas poucos leitores terão estômago para ler, estejam avisados. Para Todos os Tipos de Vermes não é uma história em quadrinhos para fracos.

É tanta coisa a ser elogiada, que não sei por onde começar. Graficamente, a autora mesclou elementos estéticos de mangá, cyberpunk e um toque de surrealismo típico de Jean “Moebius” Giraud, algo que eu julgava impossível, mas que funciona na história. O modo como cada página foi diagramada foge do padrão, mas a narrativa é fluída. Os balões de fala serpenteiam e os recordatórios representam as falas de quem está distante, ou gritando ou se comunicando por aparelhos. O ambiente é de ficção científica distópica, mas cada palavra escrita liga essa fantasia futurista a nossa realidade cruel, desumana e injusta para a grande maioria da população.

Sobre a história, esse foi o motivo de eu ter demorado para escrever essa resenha, são tantos detalhes (e tão resumidos) de como a humanidade chegou àquele ponto que, pela primeira vez em muito tempo, tive que redobrar a atenção e reler alguns pontos em uma história em quadrinhos. Para Todos os Tipos de Vermes é uma ficção científica distópica de difícil digestão até para os que estão acostumados com esse tipo de temática. São 56 páginas em que leitores afobados não entenderão nada e os atentos estarão convidados a uma ou mais releituras.

Num futuro onde tudo deu errado, grande parte da humanidade teve que se mudar para dentro de vermes gigantes. Isso mesmo. A classe mais oprimida vive nos intestinos dos vermes e para sobreviver precisou entrar em simbiose com um fungo na pele e ter parte de seus intestinos expostos; são os intestinais. Os intestinais são reprimidos e enfraquecidos por suas condições de vida.

Os que vivem fora dos vermes, os lipídicos, normalizaram a opressão contra os intestinais através de discursos de ódio que justificam a opressão passados de geração em geração, mas que não condizem com a verdade histórica daquele futuro pós-apocalíptico. Neste contexto, quando a jovem mulher intestinal Agurah morre, seus dois protegidos, Ékteon e Anokye, resolvem sair do intestino do verme e chegar até os lipídicos.

Ékteon é uma garota inteligente que entra na rede de computadores dos lipídicos e entra em contato com a misteriosa Dual Glaive que está do outro lado e quer ajudar a dupla de amigos. Não confiando muito em Dual Glaive, Anokye, um jovem corajoso, vai na frente numa jornada a um lugar supostamente melhor, mas também a um lugar em que o tratará com preconceito, desdém, discriminação e até mesmo violência bruta e gratuita. Ele também ruma em direção a verdade sobre como as coisas chegaram naquele ponto. Falar mais que isso é dar spoilers.

Tudo isso resulta em uma reflexão sobre o nosso presente que é maior que as 56 páginas do livro. O racismo é a maior injustiça de todas as apontadas pela história, com ele vem a segregação e a exclusão cultural, espacial, social e até mesmo econômica. Tudo isso está presente na história. Como uma boa ficção científica, Para Todos os Tipos de Verme fala verdadeiramente de pessoas e relações sociais presentes usando um pano de fundo futurista com tecnologias que ainda não existem e, neste caso, uma perspectiva pessimista diante de nosso presente. Um pessimismo que está mais próximo do realismo, infelizmente.

Geralmente, livros ganham versões em quadrinhos com o tempo. Espero que a autora faça, ela mesma, uma adaptação na contramão de sua obra de quadrinhos transformando-a num livro em prosa. Para Todos os Tipos de Vermes pode ganhar mais detalhes, continuações e nuances. Quero saber mais daqueles personagens, mais detalhes de como o mundo chegou àquele ponto. Enfim, quero mais.

Kione Ayo quebrou de vez o meu preconceito contra a ficção científica brasileira. Me fez gostar de uma história com elementos de Duna, sendo que eu não gostei muito de Duna, embora reconheça sua força. Podem me julgar, mas eu não gostei muito de Duna (só li o primeiro livro e para mim tá bom). Enfim, Kione Ayo acertou em cheio comigo onde outros antes dela erraram (outros ainda que consagrados).

Capa cartão, lombada quadrada, miolo em preto e branco, menor que o formato americano, maior que o formatinho. Para Todos os Tipos de Vermes é um lançamento da editora Mino e está disponível a R$28,00 (mais o frete se você comprar o impresso online).

O livro Para Todos os Tipos de Vermes é parte do projeto Narrativas Periféricas, financiado por via de financiamento coletivo em uma parceria da editora Mino, do Chiaroscuro Studios e do evento Perifacon, cuja edição de 2020 teve que ser cancelada por conta da epidemia do vírus Corona. Que venha a Perifacon de 2021 e mais Narrativas Periféricas no futuro é o que todos desejamos.

Rodrigo Rosas Campos

P.S.: os Correios esse ano foram excepcionais. Antes da pandemia do vírus Corona, já tinham o hábito de atrasar contas e encomendas, a pandemia foi a desculpa perfeita para eles piorarem o serviço que já é péssimo. Para Todos os Tipos de Vermes chegou machucado. Reclamar para a empresa parece não surtir muito efeito e eles fazem de tudo para burocratizar as queixas, então deixo minha queixa pública mesmo. Este P.S. nada tem a ver com a resenha acima, é só uma carta aberta contra o péssimo serviço dos Correios que tanto atrapalham as pequenas editoras, lojas e autores independentes de nosso país que não contam com distribuidoras fortes e próprias. Obrigado Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos pela ajuda que vocês não prestam ao mercado editorial do Brasil como um todo. Obrigado por nada!

Outro P.S.: O Chiaroscuro Studios colaborou com o projeto Narrativas Periféricas, mas os livros do projeto Narrativas Periféricas são publicados pela editora Mino e não são parte do selo prometido pelo Chiaroscuro Studios no projeto Dias de Horror. Projeto este que, apesar de não ter entregue o selo independente, me deu orgulho verdadeiro ao disponibilizar, de graça, Dias de Horror em formato digital para os tempos de pandemia. Não tenho como saber hoje se ainda está disponível, essa promoção foi divulgada com tempo limitado.

Um comentário em “[Resenha] Para Todos os Tipos de Vermes de Kione Ayo não é Uma História em Quadrinhos Para Fracos

    Mônica Carneiro disse:
    25/11/2021 às 18:15

    Parece ser bem bacana. Aquele quadrinho pra pensar… = )

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