Garimpando Em Gibiterias Especial: Providence Volumes 1, 2 e 3 – A Série Completa de Alan Moore e Jacen Burrows no Universo de H. P. Lovecraft

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providence1Desaconselhável para menores de 18 anos!

Alerta de Spoilers eventuais! O texto a seguir será sobre a história como um todo. Para os que decidirem comprar os 3 volumes antes de começar a leitura, alerta de spoiler!

Esclarecimento importante: como o primeiro volume dessa série saiu aqui no Brasil em 2017, o segundo em 2018 e o terceiro também em 2018, chegando nas gibiterias do Rio de Janeiro só em 20 de fevereiro de 2019, resolvi colocar toda a série em um Garimpando em Gibiterias e não em uma resenha comum.

O mercado de quadrinhos no Brasil é muito fraco, sejamos honestos. Lá fora, grandes obras permanecem em catálogo permanente tal como livros clássicos. Os editores de quadrinhos nacionais são bem imediatistas e até mesmo obras como Watchmen e Maus ficam difíceis de encontrar de tempos em tempos. A série “Garimpando em Gibiterias” fala de quadrinhos que valem a pena “garimpar” em gibiterias, sebos, estoques antigos de livrarias virtuais, feiras de livros e, se a grana estiver muito curta, em bibliotecas públicas. Sim, existem quadrinhos em bibliotecas públicas, é só procurar.

O motivo deste garimpo ser especial, é que eu não ia comentar uma história incompleta e o último volume é recente. Não sei que acordo maluco a Panini foi obrigada a assinar com a Avatar Press, o fato é que essa série levou 2 anos para ser completada no Brasil, sendo que já estava finalizada lá fora em 2017 antes da Panini publicar o primeiro volume por aqui. O ideal é que estivesse em um volume único ou que tivesse periodicidade bimestral entre um e outro no máximo.

A pedra garimpada de hoje é a série Providence de Alan Moore e Jacen Burrows. Antes de mais nada, é um quadrinho pesado mesmo! Se você, leitor(a), está vendo isso é porque consegui ver a Panini terminar esta série no Brasil. Mas vamos por partes: quer continuar? É um quadrinho pesado mesmo, fica de novo o aviso. Bom, então, siga em frente.

H. P. Lovecraft foi o primeiro autor que, na era dos pulps, revistas que traziam contos literários de diversas temáticas, no caso dele, horror, compartilhou seu universo em vida com seus amigos, permitindo que eles usassem cenários, personagens etc. Um universo compartilhado muito antes da criação do Superman e dos demais super-heróis, mas isso não vem ao caso agora. Como já foi dito, as histórias eram de terror e horror, mas Lovecraft deu uma apimentada no gênero com a máxima “magia é ciência que não foi explicada.”. Terror e ficção científica juntos, desde o Frankenstein de Mary Shelley, fazendo tradição e influenciando cinema, quadrinhos etc. Mas foi Lovecraft quem criou a ideia de alienígenas criando, usando e abusando da humanidade, alienígenas estes que eram tidos como deuses ancestrais. O maior desses monstros é Cthulhu…providence2

… “Poxa, Rodrigo, vou ter que ler quantos livros para entender esse quadrinho?”

Calma! Nenhum! Esta série é uma releitura do universo de Lovecraft. Isso quer dizer que há diferenças em relação a base literária original. Se você já é leitor de Lovecraft e é purista, esta série provavelmente não irá agradá-lo, ou ao menos não tanto. Mas qual é essa diferença?

Lovecraft e os escritores que usaram elementos de suas obras escreviam ficção, mas muitos fãs entraram na pilha errada de acreditar. Isso gerou um monte de teorias conspiratórias que influenciam a ficção e as teorias da conspiração até hoje. Alguns dizem que Lovecraft intuiu uma verdade na qual não acreditava. Pois bem, nas histórias de Moore, Lovecraft aparece como sendo este escritor que muda os nomes de lugares por intuir e escrever sobre uma verdade na qual não acredita.

A trama começa em 1919, a lei seca e o voto feminino entram na pauta da política estadunidense. Robert Black é um jovem repórter, judeu e homossexual, numa época em que “sair do armário” não era uma opção. Ele sai da casa dos pais e vai para Nova York para ter alguma privacidade. Em Nova York, ele está trabalhando para o jornal New York Herald e vivendo sua vida oculta com a comunidade gay local.

Ao investigar uma matéria tapa buraco sobre a aparição de um suposto demônio, Robert entrevista o senhor Alvarez, um médico que vive em um quarto de pensão refrigerado artificialmente por ter uma estranha doença que o obriga a viver em uma temperatura baixa, beirando o congelamento. Nesta entrevista, Robert tem uma pista de uma Nova Inglaterra oculta e decide investigar a fim de escrever seu tão planejado e adiado grande romance americano. Robert pede licença do jornal, pega suas economias e parte para a jornada depois de terminada a matéria tapa buraco.

Mal sabe ele que sua jornada o levará a um sinistro caminho sem volta. Ele procura um livro que, unido a outros, é a chave para levar o mundo e a realidade como a conhecemos ao caos. Em sua jornada, Robert faz anotações em um caderno de luxo enquanto coleta publicações e gravuras. Desta forma, textos em prosa complementam os quadrinhos, um traço bem característico de Alan Moore.

providence3Mas o ponto central da viagem de Robert é uma fazenda na qual um estranho meteoro caiu e as consequências do que aconteceu após essa queda. Relatos estranhos, mortes inexplicáveis e consequências bizarras, além de uma sociedade secreta fundada em torno deste acontecimento. Robert Black passa pela fazenda onde o meteoro caiu e por várias cidades da Nova Inglaterra até chegar em Providence e travar um contato maior com o próprio H. P. Lovecraft.

Se Moore está trabalhando em um universo próprio ou num de outro autor, ele é brilhante do mesmo jeito. Por parte do escritor, houve uma melhora significativa em relação a O Pátio e ao Neonomicon. Comparar Providence com V de Vingança, Do Inferno, Choques Futuristas etc. só mostrará o gosto pessoal de quem o fizer. Uma das grandes novidades de Providence é que as alfinetadas e as mudanças de Moore na obra de Lovecraft agora estão muito, mas muito mais contundentes. Digamos que em O Pátio e Neonomicon, Moore deu alfinetadas em Lovecraft, em Providence, Moore parte para as facadas.

Quem conhece a vida de Lovecraft, sabe que ele era, além de assexuado, um poço de preconceitos: era sobretudo racista. Sua obra de terror refletiu muito de sua ojeriza por sexo e seus preconceitos raciais, sociais, além de homofobia, se não curtia nem sexo hétero, que dirá homo. Moore cria Robert Black como um jovem gay, num tempo em que os gays não tinham a opção de sair do armário e se protegiam em guetos, judeu, repórter e aspirante a romancista. Ou seja, o protagonista de Moore é tudo que um protagonista de Lovecraft não seria, ao mesmo tempo, Moore o descreve como um típico herói Lovecraftiano, dando-lhe voz em primeira pessoa inclusive.

Providence está no mesmo universo (contexto) em que O Pátio e Neonomicon, e isso se evidencia no volume 3. Alan Moore usa as cidades reais que inspiraram Lovecraft na criação de suas cidades fictícias. Com efeito, a cidade que dá título a série, Providence, é a cidade natal de H. P. Lovecraft. Leitores ansiosos, não se preocupem, a leitura de Neonomicon não é obrigatória para a compreensão de Providence.

No quadrinho há a parte de quadrinhos propriamente dita e o diário e as publicações e gravuras coletadas por Robert Black em sua jornada. Isso mistura a narração em terceira pessoa, na parte de quadrinhos, e a narração em primeira pessoa, do texto.

Nos textos em primeira pessoa, Robert segue a trajetória de um personagem Lovecraftiano típico: no início ele nega os elementos sobrenaturais e desacredita das falas de muitos personagens por puro preconceito; mostrando que quem sofre preconceitos não está imune a ter os seus próprios. Com o passar do tempo, o sobrenatural vai se impondo e ele começa a questionar a própria sanidade, ainda desacreditando dos fenômenos, mas começando a dar o braço a torcer. Fora alguns panfletos que ele coleta e não lê. Estes panfletos e os quadrinhos propriamente ditos fazem o leitor ter mais conhecimento da história que o próprio protagonista. Isso é o ponto alto da história.

E a edição em si, valeu a capa dura nos 3 volumes? O texto de Alan Moore neste trabalho até vale a capa dura; mas os desenhos de Jacen Burrows não colaboram e fazem da capa dura um exagero de capricho. Quadrinho é harmonia entre texto e ilustrações, e esse conjunto não vale capa dura. As 3 edições deveriam ter o mesmo formato do Neonomicon da Panini de 2011, capa cartão com preço mais em conta. Mas vai saber que acordo a Panini fez com a Avatar Press. A própria divisão da história em 3 volumes foi um absurdo, só servindo para encarecer o quadrinho e afastar leitores casuais e novos em potencial.

Também em relação ao Neonomicon, o desenhista não melhorou, o desenho continua protocolar: bom, e sem estilo. Jacen Burrows não evolui, parece usar mais computador que pincel, lápis, caneta nanquim etc. As cores continuam fakes; se fosse um jogo de videogame numa tela de PC ainda seria tosco. Os personagens são tão iguais que continuo achando, quase tendo certeza, que ele usou modelos prontos de um programa gráfico qualquer. Mas com o texto do Alan Moore eu leio gibi desenhado até pelo desenhista da Peppa Pig ou pelo Rob Liefeld. Não, este último é brincadeira MESMO!

As edições possuem extras, mas os extras decepcionam. Originalmente cada edição mensal, das 12, teve 5 capas. Foram 5 capas alternativas para cada edição, 60 capas diferentes. E como isso aparece? Numa galeria de capinhas com 4 capas por página e as capas com ilustrações de capa e contracapa foram publicadas na vertical (como um retrato de paisagem horizontal virado) em uma página cada. Grotesco, não? Mas você não leu errado.

Vale a pena garimpar? Vale. Mas tenha paciência, compre os 2 primeiros em sebos e gibiterias de usados e espere o volume 3 baratear. É uma bela leitura introdutória para amantes de terror conhecerem, pela ótica de Alan Moore, um pouco da obra de Lovecraft. Com efeito, o volume 3, mais recente, saiu por R$51,00. Caro, eu sei. Se soubesse não teria comprado o primeiro na época, teria esperado seis meses depois da saída do terceiro para comprar os 3 juntos.

H. P. Lovecraft é a prova de que falhas de caráter não afetam a capacidade criativa. Ele influência, direta ou indiretamente, muito do terror e/ou ficção científica até hoje. Você deve gostar de alguma ideia dele sem saber que é dele. Aliais, você, que vê filmes de terror e ficção científica, já gosta das ideias de Lovecraft. Fora que, Providence é a visão de Alan Moore da obra de Lovecraft. Você pode até não gostar, mas que Alan Moore tem uma visão própria, embasada e contundente, isso é inegável.

Este garimpo tem periodicidade indefinida, mas, se você quer conhecer mais, na área “Pesquisar no Blog”, digite “Garimpando em Gibiterias” e clique no botão “Pesquisar”.

Boas leituras e, se puder, bons sonhos, huahahahahahaha!

Rodrigo Rosas Campos

P.S.: mais sobre Lovecraft? Na área “Pesquisar no Blog”, digite “Lovecraft” e clique no botão “Pesquisar”, tem outras coisas aqui que nem eu sabia que a Ana tinha posto e que tinham relação.

Mais de Alan Moore? Na área “Pesquisar no Blog”, digite “Alan Moore” e clique no botão “Pesquisar”.

Por fim, há edições de bolso pelas editoras Hedra e L&PM da obra de Lovecraft que são bem em conta e que trazem as histórias mencionadas nesta série de quadrinhos. E foi no conto Nas Montanhas da Loucura que Lovecraft determinou, oficialmente, que todas as suas histórias se passavam no mesmo mundo. Tem edições de luxo mais completas? Sim. Mas não está fácil para ninguém. Livros de bolso novos são baratos, ficam ainda mais baratos em sebos e podem ser facilmente encontrados até em bibliotecas públicas. E um aviso: Lovecraft é um autor prolixo, não é todo leitor que gosta de ler em uma página o que poderia ter sido escrito em uma frase, mas as ideias dele influenciaram muito do que temos hoje. Todavia comprar uma edição mais completa, luxuosa e cara é o risco de pagar muito e não gostar. Quer aprender a nadar? Vá para uma piscina ou para um rio calmo, não mergulhe se não conhece a profundidade e não entre no meio de um mar revolto.

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